sexta-feira, 1 de março de 2019

Coração Valente

Texto escrito aos 15 dias do mês de novembro (2017). Precisava escrever a descrição de uma pessoa para a disciplina de produção de texto... não pude evitar as palavras que se apresentaram:


Às vésperas do Natal de 2016 meu namorado infartou. A fragilidade da vida é um dado de fato da nossa humana existência. Sabemos disso desde sempre. Mas sabemos “assim”, como sabemos que o universo provavelmente nasceu da grande explosão do Big Bang. Saber não equivale a compreender. 

Naquele Natal, passei do saber ao experienciar. Na época, era um namorado recente; mas contrariando minhas estatísticas amorosas, ocupava um lugar de destaque na minha vida e na minha família, já havia me acompanhado até Santa Cruz, cidade de onde venho, e conheceu minha mãe e minha doce azeda avó (não costumo apresentar nem meus amigos para minha vó).

A tal experiência deu-se durante uma jantinha a dois lá em casa, ele havia cozinhado um risoto de camarões realmente delicioso e, de repente, se pôs de pé com uma expressão no rosto que me deixou em estado de alerta, girou o tronco para um lado e outro, olhou-me muito sério e disse pela segunda vez naquela noite: não estou bem, estou sentindo algo estranho no peito.

Em Santa Cruz do Sul, eu havia trabalhado três anos na área da saúde e cursado um semestre de enfermagem; desde então, há momentos em que uma sirene dispara dentro de mim. Aquele foi um desses momentos. Situações assim nos colocam diante da fragilidade da vida e da força do inesperado. Pode ser um furacão, um terremoto, uma enchente, uma bala perdida. Ah! Mas isso só passa na televisão dirão alguns. E que tal pisar em falso e quebrar um pé ou uma perna, ter a visão ofuscada pelo sol e acabar atravessando no sinal vermelho e...

Os momentos “quase” também contam, nos dão aquele susto, a vida segue porém: o ônibus que buzina em tempo e a gente volta para a calçada são e salvo, apesar das pernas parecerem gelatina; um acidente de carro bem na tua frente, mas que não te atinge; o freio da bicicleta que falha numa lomba como a da Lucas de Oliveira, quadras antes de cruzar com a Protásio; um infarto no coração de quem a gente ama.

Falando em amar, o músculo cardíaco dele é resistente, em repouso bate em torno de 64 vezes por minuto. A cardiologia diz que assim é saudável. Talvez por isso me possa valer de verbos conjugados no presente.


Ele é um cara magro. Tem um físico parecido com o meu. Perto dele nem me sinto miúda. Me sinto bem. Nos finais de semana, quando não tenho paciência de pensar em possibilidades de roupas que vou precisar para nossos momentos de lazer, caso não volte para casa, costumo usar suas camisetas e bermudas.

Ele é uma pessoa calma, tem a serenidade de um lago mesmo em dias de vento; nunca levanta a voz e, durante uma discussão, escolhe bem as palavras e jamais apela para termos ofensivos nem se fecha ao diálogo. Gosto disso nele, transmite maturidade.

As análises do seu sangue demonstram parâmetros de colesterol, triglicerídeos e glicemia dentro da normalidade. Não bebe, não fuma e faz exercícios. A pressão arterial tende a ser baixa. Ele tem 45 anos, se sabe que essa idade é a faixa de risco para potenciais cardíacos. Era o único índice contra, já que até então nem imaginávamos, mas por um problema genético e silencioso, ao longo desses 45 anos de vida saudável, a pouca gordura ingerida, ironicamente, foi se depositando nas suas coronárias até o ponto de entupi-las.


Foi aí que descobrimos, naquela noite e ao longo dos últimos meses, que a vida não está nem aí para os nossos bons índices e parâmetros médicos, esses são uma invenção humana. Já a vida não é uma invenção do homem; o homem é que é um produto da vida. Mesmo assim, os índices nos favoreceram. Deve ser por isso que ele não sucumbiu àquele infarto e tive a oportunidade de dizer que o amo.

Durante aquelas primeiras horas em que a serenidade dele se foi, e, ao longo dos três meses de repetidas internações, 4 cateterismos e a implantação de 5 stents, mantive a calma. A calma me ajuda a tomar a iniciativa e a agir rápido, como toda situação de risco requer; além de manter as coisas como elas parecem ser: irreais. Também ajuda a responder várias vezes as mesmas perguntas: - Não, ele não tomou Viagra, já expliquei isso para o teu colega; sim, eu compreendo a importância dessa informação.

Até mesmo quando o médico disse claramente “ele está infartando, mas não conseguimos entender o porquê e ele corre sério risco de vida”, só pude pensar: é de morte seu ignorante, risco de morte.

Risco que corro, corremos, todos os dias. Da hora em que me levanto da cama - ou mesmo antes disso -, até a hora em que vou dormir - ou enquanto durmo - posso morrer. Podemos morrer. Aprendi, com as coronárias dele, que não estamos a salvo. Nossa juventude é mera ilusão.


Desde o Natal passado, todos os dias me prometo que permanecerei calma; a calma mantém, para mim, as coisas irreais. Mas basta ele passar algumas horas sem dar notícias para a realidade daquele coração fazer o meu viver aos pulos. Porque como disse João Cabral de Melo Neto, “a medida do homem não é a morte, mas a vida”.

2 comentários:

Naiana Santos disse...

Tá bom me fez reviver aquela noite e me fez chorar, mas hoje com certeza foi um choro de pura emoção e alívio, pois cá estamos vivendo em família e bem, e hoje posso afirmar minha querida cunhada que te admiro, respeito e te amo, obrigada por compartilhar a vida comigo e claro com o meu irmão que tanto amo!

Unknown disse...

Lindo depoimento :) bjo no coração!