sábado, 19 de janeiro de 2019

O intruso



Escrevi em 26 de setembro de 2017

Na minha casa não entrava bicho. Até que encontrei, pela rua, o gato mais peste e mais fofo que já conheci. 

Sou metódica e organizada; faço tudo igual, todos os dias. Aquela coisa toda: saltar da cama, café da manhã, ritual intestinal, um banho rápido, vestir-me, arrumar a cama e sair. Todo dia. Feito máquina. 

E não mexa na minha rotina, isso desorganiza meu dia, altera meu humor, provoca atrasos. Naquele dia eu mesma cometi o erro: mudei o trajeto. Permiti que a preguiça me convencesse a pegar um ônibus, deixei Clotilde em casa - ela tinha um pneu mal calibrado - e fiz um trecho a pé. 

Numa esquina perto do trabalho, minúsculo, sujo e assustado lá estava ele e exigiu atenção com toda aquela ausência de medidas e me intimou com fortes, insistentes e agudos sons felinos.

Quem segue muito a rotina e é todo certinho, anda sempre na linha, reconhece rápido uma ordem e nem sempre dá tempo de questionar-se se obedecê-la ou não: peguei-o. 


Segui com a rotina: dormir, acordar, tomar café, usar o banheiro, tomar banho, vestir-me, arrumar a cama e sair. Tudo intercalado pelas exigências daquela criaturinha que resistiu e venceu todas as minhas tentativas de expulsá-lo da minha casa. Me fez vaciná-lo, incluir suas despesas no meu apertado orçamento e acrescentar muitas tarefas à minha rotina doméstica. Entre o acordar e o sair preciso limpar a caixa de areia, consertar as coisas que ele destruiu, limpar o que ele sujou, jogar a bolinha de papel pra ele correr atrás e trazer de volta pra mim e, fundamental para o andamento do dia, coçar suas orelhinhas e o queixinho. 

Em pouco menos de três meses a criatura trouxe reforços. Concluiu que sozinho havia abalado pouco aquele ambiente quase estéril em que eu vivia. Agora, a coisa toda já começa antes de sair da cama, pois só posso levantar depois de ganhar um beijinho de borboleta - nariz com nariz - uma massagem nas costas e coçar seis orelhinhas e três queixinhos, um de cada vez e em ordem. Só consigo chegar ao banheiro depois de atirar, pelo menos uma vez, a bolinha de papel, abrir a janela para darem aquela espiadinha lá fora e deixar um fiozinho de água na torneira para tomarem seus golinhos lambidos. Só tomo meu café depois de encher os pratinhos; e, o banho, só depois que limpo a caixa de areia, muito maior agora. A cama já nem arrumo mais, eles gostam de se aconchegar entre as cobertas enquanto estou fora.


Quando volto, se o dia foi difícil, a irritação ou frustração antes tão constantes, agora dissolvem-se ao toque mágico de uma daquelas 12 patinhas. A tristeza já nem entra mais lá em casa, desistiu depois que me encontrou rolando pelo chão às gargalhadas enquanto era impiedosamente pisoteada, mordida e arranhada em dose tripla de fofura. 

Desde que este gato exigente me encontrou na rua, minha rotina ficou mais puxada, tenho muito mais o que limpar e arrumar, mais despesas e mais tarefas. Mas me pergunto qual relação não dá trabalho? 

Sempre ouvi falar que é da natureza humana a resistência à mudança, em geral não gostamos de sair da zona de conforto; admito que, de fato, costumo não gostar, ao menos não durante o processo. Porém, passei de na minha casa não entra bicho, para não mexe com meus gatos. 

3 comentários:

Fabi disse...

Seus felinos domaram a dona. Amei o texto!

Unknown disse...

Que delícia de texto!

Ângela Ghizi disse...

Simplesmente Linda essa declaração de Amor aos Bichanos da Vida da gente!
Adorei tuas palavras!