segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Assumindo a culpa

Estou revisando meus arquivos no computador, fazendo uma faxina e encontrei alguns textos. Esse me deixou perplexa, não lembrava que o havia feito. 

(Texto de 14 de fevereiro de 2008)

Desde que lembro de mim mesma, ouvia o pai dizer que deveria ficar longe dos entorpecentes. E eu lá com a cara de sabida concordando. Um dia ele se de deu por conta que eu não sabia o que eram entorpecentes e me explicou. Lembro-me da história que ele contava sobre o pai dele tê-lo levado para ver o mundo marginal e do quanto àquelas cenas o chocaram. Ainda acrescentava que não faria isso conosco – tenho irmãos – por considerar exagero, mas afirmava que para ele tinha surtido o efeito que o pai dele desejava. E nos contava histórias cabeludas.
Cresci longe das drogas, sabendo o quanto poderia ser perigoso aproximar-me de estranhos, aceitar doces na rua ou andar em más companhias.
No início da adolescência conheci uma galerinha que se autodenominava os maconheiros. Até a minha melhor amiga se vangloriava de já ter fumado um baseado. Eu nem sabia que formato aquilo tinha. O cheiro eu conhecia porque o pai parava o carro quando passávamos por algum lugar e ele o sentia. E me dizia: isso é fedor de maconha, os descarados já fumam assim, debaixo das fuças da gente, fica longe disso.
Como sempre fui muito exagerada nas minhas reações, ficava horrorizada quando percebia que algum dos guris da turma tinha aquele cheiro nas roupas. E me chamavam de careta. Às vezes nem me convidavam para as festinhas. Eu iria estragar o clima com a minha cara de reprovação. E passei toda a adolescência, período em que poderia ter sido vulnerável e influenciada, sem chegar perto da tal. Sem conhecer a cor, sem saber como se fumava. E me orgulhava disso.
Sai da adolescência. Fui morar sozinha. Achava-me “a” independente. Muito segura e cheia de opiniões próprias. Conheci outras pessoas, com idéias que me maravilhavam. Com valores que eu concordava e admirava. A maioria fumava maconha. Os que não fumavam não se importavam. E achavam aquilo normal. Defendiam a canabis quase como se ela fosse responsável por serem assim tão bacanas. E eu já não tinha mais tanta convicção de que a maconha era uma vilã. Quase todo mundo fumava. Todo mundo que eu admirava. E ninguém tinha problemas de saúde, nenhum deles parecia ter neurônios a menos. A vida de nenhum deles estava sendo destruída pelos terríveis entorpecentes. E todos tinham aquilo que eu sonhava dia e noite: um diploma acadêmico.
A esta altura meu pai já tinha incrementado o discurso dizendo que as drogas financiavam a violência. Que o país estava em má situação porque os traficantes estavam tomando conta. Que quem fumava maconha era culpado. Mas nessa época, a influência dele sobre mim não era mais a mesma. Já não concordava com tudo o que dizia. E já havia me decepcionado com ele. Além disso, morávamos em cidades diferentes. E sinceramente nunca tinha parado para refletir sobre o fato de as drogas financiarem a violência. Isso nunca chegou a fazer muito sentido, era uma informação desconectada de tudo. “Cultura dos pedacinhos” como diz o professor Osvaldo Biz.
Convivi com essa turma por uns dois anos. Não os condenava por fumarem. Mas permaneci imune aos encantos da maconha. Ainda tinha medo que ela pudesse me fazer mal.
Até que um dia, depois de adulta – eu achava que aos 23 anos era muito adulta, dona do meu nariz, pagando todas as minhas contas, teoricamente com minha cabeça formada, com a curiosidade despertando, poderia decidir sozinha se iria ou não experimentar. E começando a acreditar que a maconha era inofensiva, que o álcool poderia me prejudicar muito mais que a inocente e fedorenta maconha, eu experimentei.
Uma. Duas. Três vezes. E a consciência começou a pesar. Morria de medo que o meu pai descobrisse ou que eu mesma acabasse contando. Não sei esconder o que acontece comigo. Preparava-me para entrar para a faculdade. Iria realizar o sonho dos meus sonhos. Tornar-me-ia parte dos 3 a 6 por cento privilegiados universitários. Eu era o futuro do Brasil. Quatro vezes e confessei pra um amigo. Ele não me condenou, até achou que eu tinha demorado. Confessei para o irmão mais velho. Ele ficou me olhando com uma cara estranha e disse: sempre pensei que tu tinhas juízo.
Mas continuava inquieta e confessei para um amigo de colégio. A mãe dele tinha sido minha professora. Era a única pessoa que falava de política comigo de uma maneira que as coisas faziam sentido. Ele lia os jornais, era mais esclarecido. Tinha muitas convicções. Entendia o sentido da advertência do meu pai. E mais: apontou-me um dedo enorme e disse: TU FINANCIAS A VIOLÊNCIA. E com toda a calma me explicou tudo àquilo que no fundo eu já sabia, mas não queria pensar a respeito. Rebateu todos os meus argumentos, até o covarde “não foi eu quem comprou”. Ligou todos aqueles pedacinhos numa enorme colcha de retalhos e me fez entender qual era a minha culpa no processo.
Percebi que nós estudantes, parcela privilegiada da sociedade. Futuro magnânimo do país, somos responsáveis pela violência produzida pelo tráfico. Somos coniventes com a corrupção cometida por policiais que não merecem a farda e pelos políticos que desonram o voto popular. Ajudamos os guerrilheiros a espalhar o pânico e a pobreza pelas comunidades latino-americanas. Somos patrocinadores da miséria humana.
Tenho vergonha de um dia ter usado a maconha. E não estou condenando a planta em si ou os efeitos provocados no nosso corpo, mas o que fazem a partir dela e do nosso aparentemente ingênuo gesto de acender um cigarro ilegal. O maior dano não é a destruição de alguns neurônios. O dano maior é a negação de pensar a respeito das conseqüências e de assumir a culpa diante dos problemas sociais e agir como se eles não nos atingissem, como se não fossem problemas nossos. Ou como se não fossemos responsáveis.
Nós somos responsáveis. Quer aceitemos ou não. Pelas mortes, pela violência, pela corrupção gerada através do tráfico. Se não houvessem usuários não haveriam traficantes.
Antes de por a culpa no traficante vagabundo que fica por aí espalhando a violência ao invés de estar trabalhando honestamente, faça um exame de consciência. Se a sua estiver limpa ajude os seus amigos. Se estiver pesada como a minha tome uma atitude. Não se esconda atrás da vergonha de ter cometido um erro. Assuma. Corrija-o.
E antes de negociar ou mesmo aceitar qualquer coisa ilícita lembre-se do Davi Coimbra que escreve no seu blog: há maneiras mais criativas e modernas de ser burro. 

2 comentários:

Gabriel Amado disse...

Bem bacana teu depoimento de culpada. Concordo contigo.
Teu discurso ficou em cima dos aspectos sociais da prejudicação da maconha. Mesmo argumento daqueles que, atualemente, querem a legalização da mesma. Daí eu te pergunto: Tu seria a favor da legalização da maconha?

Valeu.

Gabriel Amado

Unknown disse...

Oi Gabriel,
Até hoje não respondi tua pergunta... Mas foi por não saber o que dizer... E ainda não sei bem. Mas é uma vergonha te deixar sem resposta, então tentarei:
Neste debate o que tem me incomodado, tento ilustrar com o seguinte exemplo:
No dia em fomos a manifestação pela legalização da maconha, me incomodou o fato de que todas aquelas pessoas politizadas e que lutam pelos seus direitos, e que sabem defender seus argumentos de modo bem mais eloquente do que toda a filosofia que estudei me permite fazer, tinham entre os dedos, um cigarro ilegal...
E pensei: é legítimo lutar por algo em que se acredita ao mesmo tempo em que se é conivente com os problemas que tal ato acarreta?
Porque nem mesmo eu sou ingênua o bastante pra acreditar que toda aquela maconha era proveniente dos quintais daquelas pessoas e dessa forma isentas da violência e do crime organizado.
Mas voltando à resposta a tua pergunta: sinto-me inclinada a concordar com a legalização da maconha. Não conheço todas as implicações, não me apropriei do todo ainda. Com as informações que tenho me parece razoável legalizar. Porém minha opinião ainda está em formação.